segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Sobre garranchos e coisas pequenas


Nunca imaginei que um dia na minha vida frequentaria um curso de datilografia. Duvido que os blogeiros de hoje digitem tão rapidamente quanto eu, mas as horas no curso de taquigrafia de sobreloja eram realmente de cortar os pulsos. Reta final de concurso, duas etapas superadas – e vencidas -, e a sua classificação final dependia daquele chatíssima máquina de comer letras que logo se tornaria um dinossauro.
A preparação para um concurso pode ser mesmo inusitada, e nada disso parece divertido até que tudo acabe. Ou melhor, tudo acabe bem! Eu tenho duas teorias: ninguém fracassa em concurso público. Desiste. É diferente. A aprovação é apenas uma questão de tempo. E de jogo de cintura, é claro. Caminhe na beira da estrada que um dia você toma o trem certo.
Mas o tempo passa e algumas coisas nunca mudam. Datilografia não existe mais, mas o que dizer de digitação? Qual pode ser a diferença entre catar milhas ou disparar uma metralhadora? Sim, faz toda a diferença. Ser ágil, com a mente e com dedos, faz mesmo muita diferença no mercado de trabalho. O que muita gente duvida é que, para concurso, o mundo não é lá tão digital assim. E escrever, sim,  ainda pode ser uma arte. Nos países árabes, caligrafia é cultura e arte da maior grandeza. Os calígrafos são respeitados como grandes artistas da pintura e a escrita é uma ciência tão antiga quanto amada! Para nós, uma letra desenhada pode ser até sinal de frescura ou futilidade. Como os frufrus num vestido de boneca. Mas na hora prova, uma letra bem desenhada, uma escrita caligrafada é como os cílios negros da Elizabeth Taylor. Inconfundíveis. Para os concurseiros, é difícil dar importância para um treino de escrita ou a importância de se devolver uma prova bonita, além de bem feita. Mas, para mim, os garranchos da jornalista canhota me custaram algumas posições no concurso, e por não sorte, não o concurso inteiro. Reta final para a prova discursiva, pânico total, estresse máximo, e lá estava eu no meu curso de caligrafia, fazendo calos nas mãos. Era um ato tão desesperado quanto necessário. Jamais a minha redação apressada e caolha seduziria qualquer leitor mais ou menos convicto.
O cursinho de caligrafia me deu também as noções de limpeza e higiene de uma redação, e com o tempo vejo que a caligrafia ainda não morreu para mim. Ainda divido o caderno com meu filho de onze anos, aceitando inclusive as comparações (e zoações...)
Escrevo frases tolas, porém elegantes, e tento fazer dessa regressão estudantil um momento de despojada loucura: “conferir o amor da montanha e a saudade do vento”.... “qualquer que seja o estágio, nunca se esqueça de demitir-se primeiro” ....”a delícia de fazer da saudade a sua outra metade...”
De rimas pobres e frases sem nexo, vou desenhando o “j”,  moldando o “q”, enganando o “b”, um dos mais difíceis de fazer na escrita cursiva.
Duas páginas por dia e minha missão está cumprida. Os progressos chegam a “mãos” vistas. Reafirmei meu voto de louvor à caligrafia quando recebi redações de alunos na fase dos recursos. Me encantei pela letra, morada de um belo texto, estruturado, dizia logo a que veio: beleza por fora e por dentro. Impecável o texto da candidata imbatível. Era a nota de redação mais alta do concurso.  Outros exemplares eram mais camaleões: a aparência refletia uma certa desestrutura interna: faltava a linearidade, a limpeza, a objetividade e a elegância do traje impecável de um bom redator. Nas curvas das letras, se perdiam um pouco as ideias e ausentavam-se as construções ímpares, aquelas que nós deixam a sorrir.
Enfim, cheguei à conclusão de que sim, uma letra bem feita, sim, é documento. E quem não quiser dar carteirada, pode ficar também sem a sua carteirinha de servidor público, e ainda por cima sem qualquer chance de ganhar a vida escrevendo na face dourada dos convites de casamento.  

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